O que fazer para acabar com a violência doméstica? Oito mulheres respondem

Não são vítimas, mas têm uma palavra a dizer. De Boticas a Faro, oito mulheres falam na primeira pessoa sobre o que é preciso para pôr um ponto final aos homicídios em contexto de violênca doméstica. Nesta sexta-feira, assinala-se o Dia Internacional da Mulher.

Desde o início do ano, 11 mulheres — mais uma criança de dois anos e um homem — perderam a vida às mãos dos parceiros, ex-companheiros ou familiares. A vítima mais recente, Ana Paula, de 39 anos, foi morta pelo marido em Vieira do Minho, distrito de Braga, a 6 de Março, véspera do primeiro dia de luto nacional pelas vítimas de violência doméstica, que se assinalou ontem. O que se pode fazer para pôr fim ao flagelo? Foi esta a questão que levou o PÚBLICO a percorrer mais de 1500 quilómetros, de Norte a Sul do país, para ouvir as propostas de oito mulheres com diferentes profissões e histórias de vida distintas. Sugerem mais educação e mais atenção de todos aos sinais de relações abusivas. Pedem que se ouça mais as mulheres e que a Justiça seja mais eficaz.

No ano passado, a PSP e a GNR receberam 26.439 queixas de violência doméstica. Mais de 800 suspeitos foram detidos (mais 100 do que no ano anterior). A maioria das vítimas são mulheres.

 

“Os homens têm muito que aprender”

Aldina Catarino, 58 anos, Mafra

Dona de um café

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O meu pai iniciou a actividade com uma taberna e uma mercearia. Os homens, por nada, batiam nas mulheres. Era horrível. O que ouvia dos meus pais era que a separação era impensável, porque era uma vergonha e ninguém aceitava. As mulheres tinham que se sujeitar a viver com eles até ao resto da vida. Eu ouvia os meus pais dizerem que aquela levou pancada a vida toda.

Com o tempo, noto que o homem evoluiu muito pouco. Continua a ser muito machista, muito egocêntrico, eles é que sabem, eles é que mandam. Só que a mulher mudou. Já trabalha, já tem opinião, gosta de gerir a casa de outra maneira, gosta que o marido ajude.

A minha televisão está quase todo o dia a dar futebol. O telejornal muda-se logo. Não estou a dizer que eles não achem mal isto acontecer, mas depois começam a dizer: “Então, mas o que é que ela fez para merecer isto?” Claro que deve haver um ou outro que acha que não precisava de chegar a tanto… Não faz parte do dia-a-dia destas pessoas ver estes temas. Fora o futebol, é muito raro estarem atentas a outro tipo de coisas.

Também não ouço muito os homens no café a falar de violência doméstica. Quando estão todos juntos é para beber. Quando falam nas mulheres falam nelas para seu uso e para prazer e não por respeito. O tema principal não é esse.

Noto muito que o homem ainda é “eu é que mando” e a mulher está sempre em segundo plano. Conforme eles querem, da maneira que eles querem. A mulher é “aquela”, é a “minha”. Um bocadinho tratada assim…

Isto é uma aldeia e os homens ainda têm muito que aprender nesse aspecto. As mulheres, depende… Vivem aqui e também ainda não são muito independentes. “O homem tem sempre a última palavra e a gente tem de se calar.” Ouço uma ou outra dizer isso e não quer dizer que não estejam revoltadas mas não têm coragem de se divorciar… Também devem ter vergonha da família.

Acho que isto devia mudar e nós, cidadãos, devíamos estar mais atentos a estas situações e denunciar. Devia haver mais denúncia sem medo. E as autoridades deviam ter um peso diferente e penalizar mais as pessoas para que isto não aconteça. É nestas classes sociais mas também nas outras.

“Não podes dizer ‘não consigo’. Não penses ‘não consigo'”

Lúcia Pessoa, 36 anos, Seia

Produtora de queijo

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Temos aqui um meio muito pequeno e, por vezes, a mulher prefere sofrer. Para ela quase que é uma vergonha, porque as pessoas vão criticar. Por vezes, ela esconde-se porque tem vergonha de estar a passar por isso. Neste meio nota-se muito isso. Que as pessoas falam, que criticam… Acredito que existem muitas mulheres que sofrem e que não fazem nada com esse receio. Mesmo jovens. Acredito que há mulheres que preferem sofrer para não dar que falar.

Uma mulher quando passa por isso tem que ser forte e dizer basta. Tem de tentar ter alguém por perto para dar apoio. Sozinhas não conseguimos ultrapassar. Mas há casos e casos. Muitas mulheres não conseguem ser fortes. Depois começam a pensar no medo…

Também há mulheres que não conseguem ultrapassar a situação por terem filhos. Depois ficam a pensar “como é que eu vou conseguir viver só com o meu filho” e vivem uma vida de sofrimento. Temos de pensar: “Eu vou conseguir e mereço ser feliz.” Ninguém merece ser infeliz.

Por vezes digo à minha família: “Não podes dizer ‘não consigo’. Não penses no ‘não consigo’. Não ponhas lá o ‘não’ e vais ver que vais ter bons resultados.” Muitas vezes digo isso à minha filha. Tem sido assim.

“A escola tem um papel importante”

Ana Cláudia Cohen, 50 anos, Alcanena

Directora do Agrupamento de Escolas de Alcanena

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Sou mãe de três filhas. Acho que as mulheres são muito corajosas. É muito importante deixar vir ao de cima essa coragem e esse amor todo que têm sempre para dar. E não têm de ter medo. Têm de ser assertivas e dizer do que é que gostam e do que é que não gostam. Isso faz parte da vida, nós temos opções… Exprimir um afecto de forma saudável e não deixar que o outro exerça o pseudo-afecto e o pseudo-amor de forma violenta e agressiva. Seja ela psicológica ou outra qualquer.

Questiono como é que é possível, com tanta informação, no século XXI, termos chegado a uma situação destas. Muitas vezes já houve tantos episódios antes e a pessoa continua a acreditar e a deixar-se ir. Enquanto mulher, o nosso papel é outro. Temos de saber dizer não e mostrar aos nossos filhos o que é uma relação saudável. Isso é um dever nosso. Quando mostramos só aquilo que é tóxico, naturalmente que os modelos se vão replicar. Estamos também a comprometer a vida deles. Temos de ser assertivos.

Nas escolas, sentimos que os alunos e as crianças trazem essas vivências cá para dentro. É muito frequente vermos algo que nos diz que houve violência sobre o aluno. E não precisa de ser física, pode ser psicológica ou violência na linguagem.

Às vezes, até a forma como os alunos falam connosco é sintoma de que em casa as coisas não correm da melhor forma.

A escola tem um papel muito importante nestas situações. Não só na sinalização, mas também em duas vias: a prevenção e a remediação. Há dez anos, era tudo remediação. Acontecia um caso e íamos tratar. Depois, havia um aluno que era mais violento e aplicávamos as medidas sancionatórias. Andávamos sempre a remediar. Neste momento, não. Já há um plano de acção concertado que também tem a ver com o programa de educação para a saúde e com o desenvolvimento da cidadania activa.

Formar os médicos

Teresa Almeida Santos, 53 anos, Coimbra

Directora do serviço de Medicina da Reprodução no Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra

Temos de ensinar toda a gente. É a primeira coisa. E não é só a educação das crianças na escola, é de todos nós. E se aumentarmos o conhecimento, a literacia, o awareness, todos estaremos mais atentos. Tal como é preciso formar as forças policiais e assistentes sociais, seguramente também é preciso chamar a atenção dos médicos para este problema. Nós estamos habituados a lidar com a doença física, mas não com o mal-estar psicológico.

Claramente, nos cursos de Medicina também deverá haver um alerta para estas situações. Não diria que seja uma unidade curricular do curso, mas que faça parte de unidades curriculares transversais, de comunicações, de conferências, palestras, seminários… O que for para chamar a atenção dos jovens médicos também para este problema.

Os médicos, particularmente os de Medicina Geral e Familiar, que conhecem melhor as pessoas e o seu desenvolvimento, têm de ter tempo de consulta e ser eles a chamar o problema. Não para perguntar directamente se a pessoa é vítima, mas para tentar perceber se está tudo bem e se há alguns sinais físicos ou até psicológicos que possam depois levar a uma investigação mais aprofundada. Mas claramente aí tem de ser o médico a procurar. Se não, muitas coisas vão ficar por dizer. Muitas passam por depressões, ansiedade, stress, problemas laborais, mas o que está no fundo se calhar não é isso… Se eles não falarem disso as pessoas também dificilmente o revelam. Até porque têm vergonha, é um tabu, têm medo de represálias.

Sei que há muitas mulheres que sofrem em silêncio durante muitos anos e que não têm abertura nem facilidade para se queixar. Porque dependem economicamente dos maridos ou dos parceiros, porque têm medo de que se se queixarem seja pior. Tem de haver estratégias para apoiar estas pessoas. É inacreditável que se morra vítima de violência doméstica. Não pode ser. É preciso fazer alguma coisa muito rapidamente. Só posso sentir-me envergonhada.

Se as mulheres sentirem que há uma rede social de apoio acho que vão deixar de ter medo. O facto de sofrer em silêncio também é ser corajoso. É preciso coragem para sofrer em silêncio. É preciso dizer que isto não é banal, não é normal, não pode ser escondido. Vocês têm o direito, como todas as outras pessoas, a ter paz e tranquilidade em casa.

“É preciso estar atento”

Magda Cruz, 20 anos, Lisboa

Estudante de Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social

Chegou a uma altura em que, sim, tive conhecimento de um caso. A nossa reacção foi chamar nomes ao rapaz. Ele ficou em choque logo a seguir, mas não fez nada quanto ao assunto e uma colega é que a levou ao hospital. Depois, ela andava a meter maquilhagem na cara. Acho que foi o contexto. O “deixa-me ver o teu telemóvel”.

O que se diz? “Isso não te está a fazer bem. Olha que não mereces.” Parece cliché, mas no caso não funcionou e pelo menos agora até parecem mais felizes. Mas é o parecer… Vamos mantendo um olho. No contexto havia álcool, mas isso não justifica nada.

Aqueles que têm a sorte de estar fora do acontecimento devem pegar na voz que têm e ir para a rua. É estarem informados e informarem os outros. Depois disso, conseguem tomar decisões muito mais responsáveis. E ver: “Epá, onde me estou a meter? Se calhar não é bem isto que quero para a minha vida. É melhor ver todos os ângulos… Não é por este homem não me querer ou não me tratar bem que a minha vida acaba.” A vida até começa é agora. Aí é que a vida se torna mais entusiasmante e não se pode deitar isso fora à pala de uma relação má.

Acho que tendencialmente estes casos acontecem com pessoas mais velhas. O amor acaba por cegar as pessoas. Não sabem bem no que se estão a meter. É um pouco estranho para mim. Nunca me aconteceu. Não sei se poderá vir a acontecer, mas é estar atento. Não sei como lidar com isso na primeira pessoa. Estando de fora e a ver de longe, acho que o mais correcto é tentar falar com ambas as partes. Tentar saber o que aconteceu e, se permanecer, avançar com a polícia…

Na faculdade, o tema vem à baila no sentido de como é que nós, futuros jornalistas, podemos abordá-lo. Como é que se pode contar as histórias dessas pessoas? Vamos tentar fazer isso na manifestação de dia 8. Procurar histórias que não foram contadas ou não foram tão aprofundadas na perspectiva de consciencializar as pessoas do que é a violência doméstica.

Violência gera violência

Ester Serrão, 52 anos, Faro

Investigadora no Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve

Pelo menos nos contextos de violência doméstica de que tenho tido conhecimento, vê-se que há um certo determinismo que tem a ver com o contexto em que as crianças crescem. Se vêem estes exemplos em casa, como é que podem aprender outra coisa? Era importante que existissem formas de alterar este ciclo vicioso. Os modelos com os quais as crianças se identificam têm de ser diferentes. Não podem ser violentos. Tem de haver este princípio muito rigoroso que é: não há agressão.

A principal sensação que tenho é que os agressores também são vítimas do contexto em que cresceram. Se tivessem tido um desenvolvimento harmonioso… Eu pensava muito isso nas escolas nas quais integrei associações de pais. Por exemplo, uma criança que agride também é vítima, muitas vezes, porque pode estar com imensos problemas.

Devia haver uma consciencialização de toda a gente de que, por muito que as pessoas se descontrolem e estejam zangadas e percam a cabeça, não pode haver este tipo de actuações. Isso parte da educação.

É preciso formar as famílias. A educação é a solução para muitos males da nossa sociedade. Quando as famílias vão ter o primeiro filho há uma série de formações sobre como é que dá o banho ao bebé, por exemplo. Pois é muito importante fazerem, também, formação sobre atitudes. O que fazer quando há desacordos, quando há maus comportamentos, quando vêem violência?

“Temos de nos aplicar mais”

Susana Esteban, 49 anos, Mora

Produtora de vinhos

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Todos os anos há casos de violência doméstica em Espanha [o país onde nasci]. Não tem vindo a decrescer, não é um problema que esteja solucionado e acho que não está em vias de ser solucionado.

Infelizmente é um problema que existe em Espanha, como também existe em Portugal. É muito grave e é incompreensível como é que ainda continua a existir. Faz-me imensa confusão. Nunca conheci alguém que tivesse sofrido este tipo de violência. Não sei o que seria capaz de dizer.

Aliás, é difícil dizer o que fazer para lidar com este problema. A educação é importante. Temos de nos aplicar mais nessa parte. Mas, tirando isso, sinceramente, não tenho mais respostas e não sei se há muitas pessoas que as tenham.

Na minha área (enologia) nunca senti discriminação por ser mulher. Mas é um mundo masculino. Em 20 anos já podiam ter aparecido muitas mais mulheres enólogas. Estou sempre a dizer que gostava que fossem mais mulheres. Eu sou a única com o prémio enólogo do ano e foi em 2012 — já passaram sete anos e ainda não deram a mais nenhuma mulher.

“O requerido deu um tiro na requerente”

Guida Vaz Nunes, 67 anos, Boticas

Advogada

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Vim do Brasil para Portugal nos anos 80. A minha primeira cliente em Boticas foi um caso de violência doméstica. Ela tinha um marido que não fazia nada e ela sustentava toda a casa. Os filhos e as irmãs achavam que ela tinha de dar o basta naquilo. Veio falar comigo para eu tratar do divórcio. Também tinha já uma queixa-crime porque ele ia para a porta da escola tratá-la mal e injuriá-la a dizer que andava amantizada com outro funcionário… Fui pedir um arrolamento dos bens porque ela queria as coisas que tinha deixado em casa. Pedi aquilo como preliminar do divórcio e chego toda contente no tribunal, que era aqui em frente, e disse ao funcionário: “Vamos fazer o arrolamento!”. Ele virou-se e disse: “Ó doutora, não há arrolamento. O requerido deu um tiro na requerente. O requerido fugiu e a requerente está no hospital.” Eu achei que ele estava a gozar, porque estava cá há pouco tempo, mas era mesmo verdade. Só que naquela altura não se falava como se fala hoje em violência doméstica. Foi uma coisa que marcou muito.

Eu tenho muita admiração por aquelas mulheres que são capazes de deixar tudo para trás. No tempo da minha mãe, eu entendia que uma mulher aceitasse este tipo de coisas por dependência económica e por dependência até mesmo social. Não tenhamos dúvidas que as mulheres estão melhor em Boticas agora do que há 20 anos. Eu tinha pessoas que só me vinham procurar por eu ser advogada brasileira. Também sei que muita gente não me procurava por eu ser mulher. Não era tanto pelo facto de eu ser brasileira. Diziam mesmo: “Ela é mulher, ela não presta”. Isso sei eu. Disseram-me muitas vezes. Posso ter perdido muitos clientes.

Acho que é tudo uma questão de educação. Acho que a grande mudança que podemos conseguir tem de ser através do barro que temos na mão: as crianças e os jovens.

Eu fico doida quando vejo que não sei quantos jovens admitem que sofreram violência no namoro. Pelo amor de Deus! Eu não admito que soframos de violência no namoro. Se sofrermos de violência no namoro, vamos sofrer de quê no casamento? Tem de se dar educação.

 

FONTE RITA MARQUES COSTA PUBLICO.PT

FOTO VERA MOUTINHO

Fonte
PUBLICO.PT
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