“Esta semana, encontrando-me eu a tomar um café matinal, uma pessoa, dos seus 30 anos, abordou-me e perguntou. Ó Sr. doutor, diga-me uma coisa: ainda há deveres no matrimónio?
Respondi-lhe que ainda temos deveres conjugais de ontem em dias de hoje.
Os papéis e as funções na família portuguesa mudaram significativamente nos últimos vinte anos, verificando-se casos em que se assiste à substituição dos agregados tradicionais, onde perdurava a autoridade paterno-maternal, pela chamada família moderna, como acontece na série norte-americana «Modern Family», série na qual os laços sanguíneos deixam de ser o elemento de união primordial, para ceder o passo a laços afetivos e a uma estrutura mais independente, sem um modelo dominante, mas assente na prática de vida do dia a dia. A interação entre os seus membros é apoiada na liberdade individual, respeito pelas particularidades de cada um, sem observar hierarquias personificadas por pai, mãe, filho ou filha. Surgiram, assim, outros tipos de família, designadamente famílias de pais solteiros com filhos que podem não ser biológicos, famílias de casais do mesmo sexo, famílias de casais com filhos de relacionamentos anteriores, ou famílias unitárias de pessoas desacompanhadas.
O Direito olha para a família numa perspetiva de proteção, regulando as relações pessoais e patrimoniais. A tendência é para que, cada vez mais, os direitos e deveres tenham uma dimensão essencialmente económica, isto é, direitos e deveres facilmente traduzidos em termos económicos. E tudo aquilo que não tiver uma dimensão patrimonial, pertencerá à vida privada, à consciência íntima e ao livre desenvolvimento da personalidade de cada um, de modo que tais direitos individuais não podem ser limitados para proteger a própria instituição familiar, ou o conceito que se pretenda ter de família.
Porém, as normas jurídicas condensadas no Código Civil ainda aludem a deveres dos cônjuges, com consequências jurídicas impregnadas de princípios de moralidade ou de bons costumes, o mesmo é dizer que possuem uma visão da instituição familiar e matrimonial estribada no passado, visão, aliás, que constitui indesmentível legado da civilização greco-latina que é a nossa, baseada no «genos» Heládico e no «pater familias» da Roma Antiga.
Assim, para o artigo 1672.º do Código Civil, temos: os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência. Embora o Código não defina o que se deve entender por dever de respeito, a doutrina e a jurisprudência vêm a entender que os cônjuges se devem tratar com urbanidade, não se devendo insultar e caluniar. Este dever é elementar e, decerto, nenhuma relação conseguirá sobreviver no meio de ofensas e de maledicências.
Quanto ao dever de coabitação, o mesmo significa que os cônjuges devem residir juntos, na casa de morada de família, em comunhão de mesa, e em comunhão de leito, obrigando ao chamado «débito conjugal», ou seja, obrigando ao compromisso sexual de um cônjuge para com o outro.
O dever de fidelidade é a obrigação de não manter relações amorosas com terceiros. Se a obrigação do débito conjugal constitui uma imposição sexual, a sua consagração na lei é suscetível de gerar situações de violência doméstica. De facto, a recusa de ter relações sexuais motiva agressões físicas e psicológicas, iniciando-se o martírio para o elemento do casal que recusa sexo e passa a repudiar o outro. O adultério, que em tempos foi crime, continua a ter uma conotação negativa associada. Raro é o dia em que, nos tribunais de família, na Comissão de Proteção de Menores, são tratados com desconfiança o pai ou a mãe que saíram da casa de morada de família e têm um novo relacionamento. O problema do amante ou da amante ainda assoma o inconsciente do julgador, que vê neles seres maléficos e não recomendáveis para conviver com os filhos depois de separados.
A dar razão a tal raciocínio, a lei veda a possibilidade de se fazer testamento a favor da pessoa com a qual se cometeu adultério, nos termos do artigo 2196.º do Código Civil. Uma norma jurídica profundamente violadora da reserva da vida privada, reconhecida pelo artigo 80.º do mesmo Código e igualmente protegida na Constituição, designadamente pelos artigos 32.º, n.º 8, 35.º e 268.º, n.º 2. Este impedimento de indisponibilidade testamentária é, simultaneamente, a conjugação da má lei com a falta de proteção dos direitos humanos que persiste no nosso ordenamento jurídico.
O dever de cooperação e o dever de assistência afiguram-se como deveres económicos, prestacionais, tudo se traduzindo em dinheiro, em pagar. Como se o interesse da família estivesse sustentado no património móvel ou imóvel de cada um.
Os tribunais de família não se interessam pelo que se passa das portas para dentro num casamento que não seja delitivo, pouco interessa que um dos membros do casal reclame que apenas deseja do casamento afeto e que se cansou de ser apenas o «sustento», desse modo procurando, noutra relação, a partilha desse mesmo afeto.
O direito da família reflete um jogo de espelhos em que o amor e o afeto se encontram enovelados nos deveres conjugais.”