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Nacional

Com as ruas vazias, a festa da liberdade faz-se em casa e de janelas abertas

Pela primeira vez, o 25 de Abril não se vive nas ruas. Sem desfiles nem convívio, a festa da liberdade resiste entre paredes. Há quem cante à janela, faça cravos em origami ou memes do Salgueiro Maia, e ainda quem use a pintura para regressar à Revolução dos Cravos. “Temos de usar a imaginação. Em quarentena o dia não perde importância.”

Ilda Marques vai abrir as janelas de casa, levar a aparelhagem da sala para a pequena varanda, onde até então só moravam as suas plantas. Vai pôr o CD de Zeca Afonso a tocar no “volume máximo” para que até os acordes mais discretos cheguem aos ouvidos da vizinhança. “Vou meter música revolucionária o dia todo. E só não recito poesia de Ary dos Santos à janela para os vizinhos não pensarem que endoideci”, ri-se Ilda Marques, que vive no Bonfim, no Porto.

Devido à pandemia de covid-19, as comemorações oficiais do 25 de Abril — como manifestações, concertos, exposições ou debates — foram canceladas. É a primeira vez que tal acontece desde 1974, ano em que a Revolução dos Cravos derrubou a ditadura do Estado Novo. “Nunca passei este dia em casa ou sozinha e nunca imaginei voltar a ter a minha liberdade limitada neste dia. É um bocado triste, mas não deixo de festejar”, diz Ilda, de 75 anos, que num “ano normal” viveria este dia “num rodopio”. Como membro da União de Resistentes Antifascistas Portugueses, tem a tradição de deixar um ramo de cravos no Museu Militar do Porto – antigo edifício da PIDE – e à volta do busto de Virgínia Moura, figura da resistência antifascista que foi presa 16 vezes pela PIDE. Também não costuma faltar ao tradicional Desfile da Liberdade, que arranca no Largo Soares dos Reis e ruma até à Avenida dos Aliados. É aqui que ainda encontra os amigos da Universidade Popular do Porto, onde tem aulas há vários anos, ou as companheiras da associação Movimento Democrático das Mulheres. “É, sem dúvida, uma das maiores festas do ano”, afirma.

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Ilda Marques, 70 anos, fez parte do Sindicato de Trabalhadores das Empresas do grupo Caixa Geral de Depósitos (STEC) Nelson Garrido

Este ano, mesmo sem sair de casa, há tradições a manter. Ilda não deixa de cozinhar o habitual bolo com cobertura de morangos “bem vermelhos” que já é praxe nestes dias. “Desta vez, só não consegui comprar as velas”, acrescenta. Pode não ouvir a Grândola, vila morena no concerto que enche todos os anos a Avenida dos Aliados na noite de 24 de Abril, mas garante que cantará o êxito de Zeca Afonso na sua varanda quando o relógio marcar as 15h – aderindo ao apelo nacional da Associação 25 de Abril. E nas conversas de janela dos últimos dias tem desafiado os vizinhos a fazerem o mesmo. “Os miúdos do prédio da frente, quando me querem falar gritam: ‘Ó amiga.’ Agora sou eu que lhes digo: ‘Ó amigos, como é que é? Não se festeja hoje?’, graceja Ilda.

Conhecida pelos netos como a “avó das histórias”, Ilda considera este dia uma “boa oportunidade” para falar sobre a “lufada de ar fresco” que foi o 25 de Abril e relembra o desprezo que, durante a ditadura, havia pelos direitos humanos, desde logo pelos direitos laborais das trabalhadoras. “Eu trabalhava no Banco Nacional Ultramarino e criei uma guerra com a direcção só por exigir o direito a uma hora de amamentação depois de ser mãe. Fui interrogada, afastada dos meus colegas, todos os dias tinha de escrever num livro a justificação para ter essa hora. Escrevia sempre a vermelho”, exemplifica. “Foi no 25 de Abril que senti pela primeira vez que tudo se ia moldar pelas nossas mãos”, sintetiza Ilda, que não esquece a “aflição de a televisão ir abaixo”, impedindo-a de entender “que revolução acontecia em Lisboa”, e a “alegria enorme” ao perceber, finalmente, “tudo o que vinha por aí”.

Ao contrário da portuense, Daniel Silva, de 22 anos, não assistiu à Revolução dos Cravos — ​e durante muito tempo não associou sequer esta data aos “valores de Abril”. Na adolescência, o 25 de Abril era um pretexto para ir com os amigos aos “famosos” concertos que aconteciam na zona ribeirinha do Seixal ou na Praça da Liberdade, em Almada, onde actualmente vive. “Marcava o início das festas, era quase como o início do Verão”, relembra o jovem. O dia ganhou maior peso nos últimos anos, à medida que Daniel prestava mais atenção às histórias que o pai, Júlio, contava (e recontava) ao jantar. “Comecei a entender como o 25 de Abril foi o início de um novo capítulo, não só para o país, como para a minha família.”

De São Vicente para Lisboa

A família paterna de Daniel vivia em São Vicente, Cabo Verde, à excepção do avô, que trabalhava na Alemanha para ajudar a sustentar a família. Em 1974, a avó, o pai e a tia de Daniel viajaram de barco durante sete dias até Lisboa — a avó iria receber cuidados médicos no Hospital Egas Moniz. Chegaram na madrugada de 25 de Abril e, sem perceberem porquê, foram obrigados a ficar dez horas dentro do barco. Quando finalmente tiveram autorização para sair, a avó foi “directamente” para a casa dos familiares que a iam receber no Conde Redondo, em Lisboa. “Ela não festejou, porque o meu pai e a minha tia eram crianças e ela não compreendia o que se estava a passar. Não falava português, só crioulo.”

Quando a avó Rosa percebeu que a ditadura tinha acabado, não voltou para Cabo Verde. Em 1976 recomeçou a sua vida em Almada, Setúbal. “Se a minha família não tivesse vindo nesse dia, se calhar não tinha ficado cá, o meu pai não conheceria a minha mãe. Para mim, o 25 de Abril é o início de tudo o que veio a ser a minha vida, estruturou todas as minhas possibilidades”, afirma o jovem almadense Daniel Silva, que faz voluntariado na Ad Sumus – Associação de Imigrantes de Almada.

Cada vez mais curioso com “a explosão de liberdade” que fez a avó ficar em Portugal, no ano passado Daniel foi pela primeira vez com os amigos ao tradicional desfile na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Agora, ao não poder cumprir aquela que é a sua “nova tradição”, organizou um “programa cultural” em família, com os pais, Júlio e Denise, e a irmã Eva, que tem 15 anos.

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Daniel Silva, a irmã Eva e os pais, Júlio e Denise DR

Ao longo do dia vão ver documentários e filmes que o jovem escolheu – Outro País, de Sérgio Tréfaut, Cavalo Dinheiro, do Pedro Costa, e a Lei da Terra, do Alberto Seixas Santos. “São filmes que humanizam a revolução”, explica Daniel, que também criou uma lista de sugestões cinematográficas chamada Abril a partir de casa no Letterboxd, um site que permite assinalar os filmes que queremos ver e partilhar opiniões com outros utilizadores. “Eu gosto muito de filmes sobre o 25 de Abril, mas acho que nunca falam muito sobre a presença negra e africana no processo da revolução, desde os presos políticos até aos imigrantes que ajudaram a construir as cidades e a cuidar dos filhos dos patrões”, critica Daniel.

A contar os dias para a quarentena terminar, Daniel considera que a grande festa deste ano vai ser “quando voltarmos todos para a rua”. “É um outro 25 de Abril”, diz, entre risos. Mas, mesmo nessa altura de euforia, é necessário continuar a reflectir sobre a liberdade. “Acho que é papel dos jovens expandir a ideia de liberdade. Não é só podermos ir à rua, uma pessoa livre tem de ter condições salariais dignas e segurança, e acho que é por isso que devemos batalhar quando voltarmos ano normal”, argumenta.

Alentejo, Abril e arte

Há meses que Joaquim Rosa andava a planear este dia. Desde jovem que o professor de Expressões em Castro Verde, Alentejo, dedica as horas vagas à pintura e este ano tinha sido convidado pela Câmara Municipal de Almodôvar para organizar uma exposição em torno do 25 de Abril.

Com 55 anos, Joaquim viveu mais de perto a agitação dos primeiros anos da democracia do que as lutas contra a ditadura. Aliás, o seu gosto pela pintura foi impulsionado pelos cartazes políticos que o pai trazia para casa e que Joaquim tentava reproduzir. Ainda assim, para organizar esta exposição, desafiou-se a rebobinar as memórias vagas que tinha de 1974 e regressar ao dia em que, com nove anos, estava fechado em casa a mando da mãe e tentava perceber “o que estaria a acontecer lá fora”. “A minha mãe tinha medo e não me deixava sair. Fui construindo a história do 25 de Abril com a informação que o meu pai trazia quando chegava a casa”, relembra.

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Quadro de Joaquim Rosa DR

Depois de todo o esforço em recuperar as sensações que marcaram aquele dia, neste 25 de Abril Joaquim volta a sentir-se “trancado em casa”. “Chega a ser irónico”, diz o alentejano, que, com a exposição cancelada, foi desafiado pela filha Beatriz e pela sobrinha Sofia a partilhar as suas obras nas redes sociais. “Vais ver que terás mais gente a ver os quadros do que se acontecesse a exposição”, repetiram as jovens.

A ideia “pegou”, como diz Joaquim, e nesta semana tem publicado alguns dos seus trabalhos na sua página de Facebook com o mote #AbrilEmCasa. Beatriz e Sofia, que iriam abrir a exposição em Almodôvar com um miniconcerto, também ajustaram as suas actuações. Em vídeo, Beatriz, 19 anos, canta o tema Quando eu for grande (carta aos meus netos), de José Mário Branco, e Sofia, 16 anos, toca, no violino, Verdes são os campos, de Zeca Afonso, e Milho verde, de José Mário Branco.

Escolher e preparar estes temas não foi tarefa difícil para as jovens, que desde pequenas percorrem as aldeias do concelho de Castro Verde a tocar as “músicas da revolução” com a Sociedade Filarmónica 1 de Janeiro. “Cantamos sempre a Grândola, vila morena, a Gaivota e o E depois do adeus, mas a minha favorita é O primeiro dia do Sérgio Godinho”, explica Sofia Bartolomeu, que tem sempre música de intervenção na sua playlist, principalmente como som de fundo enquanto estuda. “Nunca passámos este dia em casa. Se calhar é por sermos do Alentejo. Em pequenina ia ver o fogo-de-artifício no terraço da minha avó, depois de ouvir a Grândola, vila morena na Praça [da República] e questionava-me se nos outros sítios festejavam como nós”, completa Beatriz Rosa.

PÚBLICO - Joaquim Rosa e a filha Beatriz, 19 anos
PÚBLICO - Sofia Bartolomeu, 16 anos, toca violino e clarineteSeja através da música ou da pintura, Joaquim considera que a arte é uma boa forma de reviver os valores de Abril. “A história, os factos não se perdem, estão nos livros. Mas os valores, como a liberdade e a união, podem-se diluir no tempo. Acho que a arte é uma boa força para mostrar a sua importância.Memes de Salgueiro MaiaAlém das jovens alentejanas, também Raquel Moreiras, de 20 anos, costumava passar o 25 de Abril na rua, a fazer peças de teatro com os amigos da companhia artística A Jangada, na ilha das Flores, Açores. Em 2017, mudou-se para o Areeiro, em Lisboa, para estudar na Faculdade de Direito, mas nunca deixou de comemorar o dia como uma “autêntica festa”.

Neste ano “inédito”, em que está longe dos amigos e da família, Raquel fez um “esforço extra” para assinalar a data. “Temos de usar a imaginação. Em quarentena o dia não perde importância”, justifica. Para suavizar a distância e juntar “a malta”, no início do mês criou um grupo no WhatsApp com o nome “25 de Abril sempre” e a imagem de um meme do capitão de Abril Salgueiro Maia. Convidou oito amigos, desde as velhas amizades dos Açores até às novas “surpresas” de Lisboa. “Alguns não se conheciam, mas assim é que é giro”, realça. Nas últimas semanas, as conversas individuais que teria com os amigos são substituídas por este grupo, em que todos partilham textos, poemas, músicas ou simplesmente conversam. “Vamos falando sobre várias coisas relacionadas com o 25 de Abril. A conversa corre livremente, parte de um sítio e depois já está noutro, é tudo muito orgânico”, diz a jovem.

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Raquela Moreiras na sua varanda, em Lisboa Nuno Ferreira Santos

Neste sábado, com as janelas abertas e Zeca Afonso a soar “o dia todo”, Raquel encontra-se com os seus amigos através da aplicação Zoom. “Vamos passar o dia em videochamada e já anotei alguns poemas que vou partilhar com eles, como o Pensei, de Sónia Balacó. A ideia é divertirmo-nos, usarmos este dia para estarmos mais próximos uns dos outros”, explica Raquel, que gostava que este grupo fosse o ponto de partida para novas amizades. Antes de este dia terminar também não faltará a chamada para os pais e o irmão, que estão nos Açores. “É uma data especial para a minha família. A minha mãe cantava a Grândola para eu adormecer”, justifica.

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Raquel Moreiras e os amigos em videochamada na plataforma Zoom DR

A algumas ruas de distância, Madalena Rebelo, que vive em Alvalade, também considera que este dia deve ser vivido “como se fosse Natal”. “Para mim é mesmo importante partilhá-lo com as pessoas de quem eu gosto”, explica Madalena, 23 anos, que trabalha na área do cinema.

Para a jovem, este era um 25 de Abril com novos começos: pela primeira vez cantaria no Coro da Achada. Há muito tempo que ouve o grupo na Casa da Achada, em Lisboa, onde costuma passar a tarde de 25 de Abril com amigos. “Gosto muito da energia deles. Já estava há muito tempo a arranjar coragem para me juntar. Este ano foi uma das minhas resoluções de ano novo”, diz Madalena, que agora cantará as músicas do coro pelos cantos da casa.

Nos últimos dias, a jovem, o seu namorado, Guilherme, a colega de casa, Sara, e a mãe, Rita, têm pensado em como comemorar este dia. Madalena vai fazer cravos com folhas de origami, Rita vai tirar o pó ao piano com as músicas de Abril e todos se vão juntar para aproveitar os filmes que a Cinemateca destacou para este dia, como a obra colectiva As Armas e o Povo. “Gostávamos de ir ver os nossos amigos que também estão em quarentena e que vivem aqui perto. Mesmo com distância, seria sempre bom. Mas não o fazer também é uma boa forma de contemplar este dia de forma diferente e usar esta situação inédita para reflectir sobre a sua importância”, acrescenta Guilherme Monteiro, 25 anos.

Ao contrário de Madalena, que em criança já descia a Avenida da Liberdade de mão dada com a avó, a família de Guilherme nunca teve o hábito de comemorar este dia “numa manifestação ou a passear”. Foi quando entrou para a faculdade que construiu novas tradições, como ouvir a Grândola, vila morena com os amigos à meia-noite no Largo do Carmo. Neste ano, sem comemorações e a atravessar um período em que os dias podem parecer todos iguais, o 25 de Abril continua a ser uma alegria – e ainda traz “alento” à quarentena. “Podemos não ter nada delineado do que vamos fazer, mas nos últimos dias estávamos sempre a dizer: ‘Está quase o 25 de Abril, vamos fazer alguma coisa.’ Não sabíamos o quê, mas esse não saber também é entusiasmante”, ri-se Guilherme.

PÚBLICO - Madalena Rebelo e Guilherme Monteiro na Avenida da Liberdade, em 2018
PÚBLICO - Madalena e Guilherme à porta de casa, em Alvalade

Mesmo sem o convívio e os copos com os amigos, Madalena e Guilherme sentem que este dia nunca deixa de ser especial. “Há algo em comum entre o 25 de Abril hoje, do ano passado ou do ano anterior. É sempre um dia que não acaba, que continua depois da meia-noite”, diz o jovem. Apesar das diversas formas que encontraram para comemorar o 46.º aniversário do Dia da Liberdade, Madalena e Guilherme partilham a mesma expectativa para o futuro que Ilda, Daniel, Raquel ou Joaquim: para o ano, a festa será ainda maior.

FONTE [email protected]

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