Arte para um mundo melhor

Num tempo em que o 'trabalho em rede' é a palavra de ordem também na arte, a realização no Porto do plenário de trabalho do IETM, organização de referência das redes de artes performativas contemporâneas europeias, representa um momento histórico, que propõe um olhar múltiplo sobre o mundo a partir da criação artística portuguesa, situando as muitas discussões no tema “Outros Centros – Caminhos, Perspetivas e Práticas”

A arte é íntima da vida, logo das questões da vida em sociedade. Se dúvidas tivéssemos quanto a isso, o encontro do IETM no Porto vem provar isto mesmo. Num gesto agregador, a partir desta quinta-feira e ao longo de quatro dias, centenas de profissionais portugueses e estrangeiros ligados às artes por via das mais diversas profissões, encontram-se para se conhecerem, debater e ver espetáculos, num movimento que se cruza com o público em geral e com a própria dinâmica da cidade. Desde logo, o tema geral é sinal do protagonismo que o Porto tem atribuído à cultura nos últimos anos, “Outros Centros – Caminhos, Perspetivas e Práticas”. E o facto de acontecer no Porto reforça essa implicação, assim regressando a Portugal, onde já esteve por duas vezes, em Lisboa (1991 e 1998, no contexto dos Encontros Acarte da Fundação Gulbenkian e da Expo’98, Exposição Internacional de Lisboa, nomeadamente). Esta deslocação também é significativa ao nível das questões gerais. Em 1991, por exemplo, a reunião decorria sobre a interrogação “Uma política cultural para a Europa?” Hoje, novamente com as artes performativas em Portugal em destaque, a questão foca-se mais no perspetivar um mundo onde importa questionar a noção de centro e reconhecer outras centralidades, nas artes mas também na vida, por via das artes.

“Moçambique”, da Mala Voadora, poder ser vista esta quinta-feira, às 19h, nos Teatro Rivoli

Desta vez, o pano de fundo é o festival DDD – Dias da Dança, com direção artística de Tiago Guedes (também diretor do Teatro Rivoli). É este evento que contribui com a moldura de espetáculos que o público em geral e todos os participantes do encontro IETM podem ver. Os dois acontecimentos arrancam em simultâneo – esta quinta-feira, dia 26, sendo que o Festival DDD se prolonga até 13 de maio e acontece no Porto, Matosinhos e Gaia; a reunião plenária do IETM (criada em 1981 em Itália com o desejo de informalidade cunhado no nome, Informal European Theatre Meeting) vai até dia 29 de abril, sendo que factualmente teve um arranque ontem, para quem chegou mais cedo, com uma visita de pré-reunião em Guimarães, organizada conjuntamente com A Oficina.

A presença de programadores estrangeiros foi uma aposta do Festival DDD desde a primeira edição, há 3 anos, para ver a dança que se faz em Portugal. O cruzamento das duas agendas este ano multiplicou essa deslocação. Por isto mesmo, este ano, soma-se ao calendário do festival um outro programa artístico de apresentação de cinco peças, a pensar nesses espectadores profissionais mas que o público em geral também pode ver, e inclui teatro, dança, performance e novo circo, de artistas do norte estreados nos últimos anos e que assim voltam a estar em cena. Neste contexto podem ser vistos: “Moçambique”, da Mala Voadora (esta quinta-feira, 19h, Teatro Rivoli), “1,5º”, de Erva Daninha (esta quinta-feira, 21h, e sexta, 19h, Teatro do Campo Alegre), “A Grande Vaga de Frio”, do Ensemble (quinta e sexta, 21h, Teatro Carlos Alberto), “Trans/Missão”, das Visões Úteis (quinta e sexta, 21h, Fundação José Rodrigues) e “Noite”, da Circolando (quinta e sexta, 22h, Teatro Helena Sá e Costa). O cruzamento entre o Festival DDD e a reunião do IETM é marcada pela peça “Brother”, do coreógrafo Marco da Silva Ferreira, que abre aquela festa da dança (esta quinta, 22h, e sexta, 19h, Auditório Municipal de Vila Nova de Gaia). Das presenças portugueses nesses primeiros dias do DDD, destaque ainda para a nova criação de Olga Roriz, “A Meio da Noite” (sexta, 22h; sábado, 19h; e domingo, 17h, Teatro Nacional São João) inspirado no cineasta Ingmar Bergman e na sua obra, assinalando o centenário do seu nascimento.

As tarefas do quotidiano de Mara Andrade também ‘pensam outros centros’

Não deixa de ser curioso e significativo a emergência de temas que reclamam uma sociedade mais igualitária e que lidam com os fantasmas de opressões de passados recentes, nomeadamente o colonialismo, tanto na esfera dos espetáculos propostos como em alguns dos debates, workshops ou palestras, inscritos no plano de trabalho. “Moçambique”, peça celebrada da estrutura de teatro Mala Voadora, de 2016, é um exemplo disso mesmo, ou o workshop “Descolonizar a imaginação”. Coexistem assim num mesmo programa o financiamento às artes, a relação com a História, e a procura de uma sociedade mais justa, que se concretizam em painéis como “Financiar o ‘acesso’: porquê, como e para quê?” ou “Showcase Europa Criativa”, esta última informativa sobre os dispositivos de financiamento do subprograma Cultura da Europa Criativa (o programa da UE para as indústrias culturais e criativas”). O tema da descentralização ou, mais concretamente, a proposta de entender um mundo diverso por via de “Outros Centros” cruza cartografias artísticas, sociais e políticas, desde logo por via da palestra em que o geógrafo português Álvaro Domingues interroga sobre “quem são hoje os outros excluídos e que novos ou velhos mundos habitam?”. Nesta problemática há ainda discussões sobre os temas “Criação Artística fora das áreas urbanas” ou “Geografia dos festivais em Portugal”. Se é certo que algumas das sessões de trabalho serão mais do interesse dos agentes culturais e artistas – como “Benchmarking nas artes performativas”, “Residências artísticas”, “Marketing urbano e cultural do Porto”, “Como ser emergente?” ou “Artes em perigo”, esta última, por exemplo, sobre a viabilidade económica das artes performativas, refletindo também sobre a sua relação com as flutuações do mercado financeiro – há todo um programa de trabalho que inscreve uma preocupação e sentido de responsabilidade da prática e da profissão artística dentro de uma visão de sociedade mais inclusiva. Nesse sentido, as alterações climáticas fazem-se presentes no debate “Pensar Verde, uma abordagem holística” ou a preocupação com a diversidade, igualdade e acessibilidade, que atravessa diversas eventos deste encontro, nomeadamente no encontro, “Arte como catalisadora da mudança”. É sobre isso que vai debater, amanhã, o painel composto por Ana Cristina Vicente (Performart, PT), Milena Dragićević Šešić (UNESCO & University of Arts de Belgrado, RS) e João Fiadeiro (Artista, PT). Mas são desta ordem a diversidade de questões que vão estar em palco em muitas das peças apresentadas. Para além das já mencionadas, refira-se a título de exemplo “Enchente” de Luísa Saraiva, que explora “os comportamentos físicos das multidões” e “as experiências individuais e coletivas de urgência” ou Mara Andrade que toca a responsabilidade da performatividade do corpo, também como documento de si mesmo, desdobrado entre o corpo próprio e o corpo do artista perante o seu público, ocupado com tarefas do quotidiano, como comer ou limpar, com um conjunto de objetos artísticos com o título de “The Lonely Tasks”, que inclui uma instalação (sábados, 28 de abril e 5 de maio, e domingos, 29 de abril e 6 de maio) e dois solos, “Après-Midi” (sábado e domingo, 15h) e “The Lonely Dinner” (domingo, 20h30), todos no espaço Mala Voadora…

Fonte da Notícia
Jornal Expresso
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